Valdemir Mourão in O pão que o táxi amassou 8
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Uma pinga, sempre a mesma roupa puída, esfarrapada, passadas trôpegas de fome e miséria, cabeça grossa de aporrinhações do povo: eis Damião. Cosme Damião, homem alto, do tipo que, se bem vestido, bem alimentado, seria um político, um burocrata, alguém... era, no entanto, um Zé ninguém. Carregava no rosto a inchação da cachaça. Nos cabelos estirados, soltos, quase louros, a possível marca de uma boa família... mesmo empoeirado. No empoeirado semblante, a fisionomia de um santo, embora desgastada.
- Damião Pezão!
Toda galera gritava, a fim de ver ele zangado.
- Eu lasco vocês fi' du'as égua!
Corria atrás de um, de outro, mas, apesar dos pés grandes, daí o apelido, a cachaça e as sicas não permitiam ele pôr as mãos em ninguém. Se pegasse um, já haviam combinado, correriam em cima dele e tomariam o colega. O mais entusiasmado era Drascute, senhor das suas estripulias, o mais traquino da turma. Além de travesso, impositor:
- Canção, vamos pro Damião Pezão!
Ir pro Damião, já se sabia que era pra aperrear o coitado. Foi esta a maneira que acharam - aliás, quem idealizou foi o Bicão, magrelão inteligente - pra sair de casa sem dizer o que fazer com ele, porque, na certa, os pais não deixariam; a não ser o Drascute, que ninguém sabia quem era o pai.
E ia mesmo. Se negasse, pegavam à força ou pegavam noutra hora e davam um cascudo. Entre um coque e a brincadeira do Pezão, era melhor a brincadeira, porque se divertia e consolidava a participação no grupo. Os outros, sempre maiores, Bostinha, Zé‑da‑Burra, Fuçura, Nerol, nunca recusavam e, às vezes, no lugar do cocorote, faziam o gela:
- Damião Pezão, Damião Pezão, quem não for, vai imprensado no portão!
O portão era vizinho à casa do Cancão, irmão do Fuçura: vermelho sangue, velho, todo rachado de boladas. O dono quase nunca ia lá, a menos que precisasse de algum produto pra drogaria, o que custava sempre. Disto se lembram demais. Era só abrir e estavam lá:
- Me dê um cheirinho de tabaco, seu Chico Paz!
- Damião Pezão, Damião Pezão, quem não for, vai imprensado no portão!
Gritavam todos, formando coro. Vez ou outra um desafinava a voz.
Quem não fosse, gelasse, recebia o castigo de ficar no portão pra levar carimbada com uma bola de couro que vivia com os pontos quebrados. Não podia sair do portão, até que levasse três boladas ou chegasse o pai ou a mãe, chamando pra ir pra casa. Se tentasse correr, os outros agarravam. Era melhor levar logo as carimbadas e ficar se vendo de dor. Não tinha jeito de escapar.
- Pega! pega! pega! pega!...
Eram todos gritando pra pegar o Cancão, numa vez que gelou, porque estava com febre. Fizeram um barulho danado, até que sua mãe, que costurava na sala, apareceu fumando numa quenga:
- Que cachorrada é esta, diacho?
Pararam de perseguir, e ele se livrou. Depois disto, nunca mais ficou no portão. Começava logo a correr pra gritarem “pega” e a mãe aparecer. Enrolou tanto os meninos, que quase perde a amizade do grupo.
- Damião Pezão!
- Damião Pezão!
Era a garotada da Rua do Papoco, ainda hoje não se descobriu porque chamam assim, se desmanchando em festa com a passagem daquele mito infantil. Divertia involuntariamente as crianças, mesmo com a sua ira, o seu sofrimento, a sua deterioração física. A inocência delas ignorava tudo isto, e a ignorância dele desconhecia a inocência da meninada. Com o passar do tempo, todos se espalharam: cada um pro seu canto.
Hoje, o grupo desfeito, a brincadeira acabada. Resta apenas a lembrança ou a esperança de que se encontrem no túmulo do Damião, pra pedir perdão pelas safadezas, suplicar alguma graça, acender uma vela ‑ é o túmulo mais luminoso da cidade no dia de finados ‑ ou agradecer alguma dádiva alcançada... nunca, nunca mesmo, gritar:
- Damião Pezão!
- Damião Pezão!
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