Data: 05/06/2009
Nome: JOSÉ AIRTON PEREIRA SOARES
E-mail: airton.soares.as@gmail.com
Assunto: AFAILCA - CRÔNICAS - 07
sex 05 06 09 - 2207
COISAS QUE O TEMPO LEVOU
(Um canto de saudade)
Por Ozires Mourão – out04 – Londrina / PR.
20 de janeiro de l969
Era uma tarde cinzenta, quase sem cor. Eu estava há pouco tempo em Belo Horizonte e, portanto, ainda “deslocado” e sem ambiente. Caía uma chuvinha fina misturando-se com as cinzas expelidas pelas chaminés da Magnesita. Não havia, portanto, poesia na tarde! Apenas melancolia. Sentei-me à frente da velha Olivetti para “produzir” o meu programa de Rádio”O que a vida me ensinou”, mas a cabeça estava em “outros mundos”.Lá fora: cinza e chuva miúda... na alma: cinza e solidão.Acho que adormeci sobre a maquina porque só me dei conta do tempo quando o “operador” me avisou que estava na hora.Sem “matéria” entrei no estúdio e comecei a falar o que me ditava a nostalgia daquela tarde.Gravado e posteriormente grafado, o programa saiu assim:
“Infeliz de quem passa pelo mundo,
Procurando no amor felicidade...
Se a mais linda ilusão dura um segundo,
Dura a vida inteira uma saudade!”
Perdoem-me a presunção, mas hoje o tema do nosso programa será muito pessoal.Talvez um canto de saudade...um triste e dorido canto de saudade! Uma revirada quase masoquista no baú da minha vida onde estão as coisas que o tempo levou, deixando apenas um indelével rastro de agridoces lembranças: infância...
juventude... amigos... e as imagens da minha terra, vão se repassando como num filme através do túnel do tempo.
É como se eu tivesse gravado na retina as cenas que revejo agora, daquele longínquo 20 de janeiro: Ipu, é minha terra natal, acordava eufórica, engalanada por bandeirinhas de papel coloridas, para comemorar o dia do seu padroeiro São Sebastião.
Desde cedinho a cidade respirava festa e alegria, quando a Banda do seu “Caboclinho”Mourão (mais tarde doada à Paróquia) estava a postos no patamar da Matriz executando a “alvorada musical”.La estavam Maciel no piston, Romualdo no trombone, Chico Gordo no contrabaixo, mestre Manezinho no clarinete, Joaquim Lira na trompa, Cirineu no sax, seu Zé do bumbo no... dito, e outros mais, completando a banda.E tome valsas, marchas e maxixes: “Sobre as ondas”,”Vieni sul mar”,“Branca”, “Raio de sol”,“Perambulando,” “Saudades de Matão” e tantas outras preciosidades que hoje ainda se ouve em programas de saudade.E a musica invadia as ruas, até então silenciosas, acordando fieis, beatas, feirantes, padeiros, e até as mangueiras, mongubeiras e tamarineiros seculares, ainda com ressaca das serestas e boemias da madrugada.
Ah, saudade imorredoura!
A tarde era a procissão... descendo a praça da Matriz em duas longas filas organizadas pelo padre Cauby e o Gerardo Ayres que do alto do seu farto bigode bem cuidado, aqui e ali, polidamente, ralhava com os desajeitados e distraídos. E entre as alas distantes, o andor do Santo Padroeiro tendo à frente o monsenhor Gonçalo, paramentado à caracter, de turíbulo nas mãos espargindo incenso naquele desfile de fé e contrição. Logo atrás, novamente a banda, agora em traje de gala, puxando o coro do hino:(Cantarolando) “Oh mártir de Cristo...Oh santo varão, livrai-nos da peste, São Sebastião...” E lá se ia a procissão se arrastando pelas ruas da cidade, cantando aquela musica dolente, tristonha, mas cheia de bondosa mensagem de fé e esperança.E ali, do lado, a visão maravilhosa do riacho Ipuçaba despencando de quase 200 metros de altura como que reforçando a euforia daquela gente pelas chuvas recentes.Era um espetáculo incomum: o povo e a natureza saudando o santo padroeiro.
Ah, saudade doída! Saudade de tudo! Permitam-me continuar falando de lá: Minha primeira professora, dona Maria Assis,simples, recatada como uma freira, na sua escolinha particular.A dona Rosely... jovem e doce.Eu adorava esse nome...E tantas outras ,inesquecíveis até nos seus mínimos detalhes:no modo de vestir, de falar, de ouvir, de ralhar, de aconselhar, de gesticular, de sorrir e até de chorar, que ficam gravados em nossa memória para sempre.Por isso, elas fazem parte da minha saudade neste momento mágico de nostalgia e doces recordações: a dona Otília, austera mas competente...a Francina! Ah,doce Francina!... delicada como o cristal, suave como uma pétala de rosa! Eu sonhava com ela como minha madrasta, mas o destino já lhe reservara outro caminho...A dona Dulce Martins, sempre elegante e suavemente perfumada, (detalhes inesquecíveis) e tantas outras que professavam a vocação para o amor. Ah, saudade das minhas professoras! Onde estarão agora? O tempo, implacavel e impiedoso, leva tudo sem que a gente perceba o que se está perdendo, e quando nos traz alguma coisa vem sempre envolta nessa tristeza do inatingivel e nessa saudade amarga que machuca, que fere, que castiga...
É assim que me sinto hoje, tristonho, saudoso, distante de tudo...mas como se estivesse vendo, neste instante, a procissão dobrando na praça da estação e entrando na rua da Itália ao som do canto triste dos penitentes exaustos, pagando promessas com pedra na cabeça ou outro tipo de sacrifício: (cantarola) “oh mártir de Cristo, oh santo varão...”
E quando vejo tudo isto com os olhos do pensamento, me pergunto:E os meus amigos?...meus velhos e bons companheiros de folguedos, sambas, caçadas, serestas e cavalgadas? O Zé do Mestre“anjo”, o João Bosco, o Zé Aragão, o Antonino, o Moacir Lopes, o Sassarico, o Eudes e tantos outros que partiram... ou ficaram, dá na mesma, pois já disse o poeta: a saudade se reparte na magoa que mortifica, pois se acompanha quem parte, não deixa nunca quem fica...
Ah,saudade do meu Ipu...da Bica, da Várzea, do Gangão, da Lagoa, do Bonito.O açude do Bonito... a gente ali, tremendo de emoção, espiando da velha cerca, as moçoilas enchendo os potes com a agua clara da cacimba, alegres e felizes, como se momentos como aqueles, tantas vezes repetidos, retratassem o resumo de todo o mundo dos seus sonhos.E la se ia o magote de moças,de pote na cabeça, Alzira,Geralda, Joaquina,Regina,Mundinha, conversando ou cantando pelo caminho ladeado de mofumbos e marmeleiros brotando.Lá no alto o sol no céu azul e profundo...ca embaixo a coragem, a simplicidade,a incerteza, a sinceridade no coração das pessoas. (Num suspiro)
Ééé... Mas, infelizmente tudo passa...e tudo passou! Entretanto, para os que lá ficaram, a festa continua com outros parceiros e personagens.Agora mesmo ,seis e quinze, a procissão deve está se aproximando da Matriz, e os fiéis cantando, já cansados:”Oh Mártir de Cristo...oh, Santo varão, livrai-nos da peste são Sebastião....”
Desculpem o meu desabafo e que São Sebastião me ajude a suportar a dor dessa saudade, nesta tarde cinzenta, nostálgica e triste como o ultimo crepúsculo de uma vida!(Pausa)
Eu falei que o tema de hoje seria muito pessoal... um canto triste de saudade... de cada rua, de cada casa, de cada arvore, de cada palmo de terra, e, sobretudo, de cada rosto que marcou minha infancia...naquele bendito “pé de serra,” onde ficou parte do meu coração. Obrigado, e fiquem certos:Pouca gente sabe o que é uma saudade assim.. numa tarde assim...com o tempo chuvoso assim... sem céu, sem sol, sem cor assim...sosinho e distante assim...
Do livro: O que a vida me ensinou
De: Ozires Mourão
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Fonte: site da AFAI – Artigos – Crônicas – pág. 15 –Acessado em 05/06/2009.
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