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Revista Homem, Espaço e Tempo Setembro de 2008 ISSN 1982-3800
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DO BACAMARTE AO LIVRO: UMA DISCUSSÃO SOBRE A “CIVILIZAÇÃO”
DA SOCIEDADE IPUENSE – 1840-19191
Jorge Luiz Ferreira Lima2
Gleison da Costa Monteiro3
RESUMO
Este artigo discute a maneira como a cidade de Ipu, outrora marcada por acontecimentos
violentos, passou por um processo de transformações culturais onde se procura, através da
ação de um grupo de intelectuais, implantar na cidade novas práticas de sociabilidade
urbana, como a criação de um Gabinete de Leitura.
Palavras-chave: cultura letrada, civilização, intelectual, gabinete de leitura.
SUMMARY
This article discusses the way as the city of Ipu, formerly marked by violent events, it
went by a process of cultural transformations where it is sought, through the action of a
group of intellectuals, to implant in the city new practices of urban sociability, as the
creation of a Cabinet of Reading.
Word-Key: literate culture, civilization, intellectual, Office of reading.
INTRODUÇÃO
Resulta sempre inquietante a possibilidade de refletir sobre a forma como a
Vila do Ipu, acossada por bandos armados, marcada por episódios violentos, foi se
transformando, culturalmente, em uma cidade onde se verificava a presença de práticas de
sociabilidade urbana ligadas ao domínio da cultura letrada. No entendimento dos
intelectuais ipuenses do começo do século XX, enquanto duraram as lutas e os bandos
armados correram livremente pelo sertão e Serra da Ibiapaba, a população do Ipu se viu
1 Trabalho resultante da ampliação das reflexões acerca das transformações culturais ocorridas na cidade de
Ipu entre a segunda metade do século XIX e as duas primeiras décadas do século XX, presentes no primeiro
capítulo da monografia Livros, homens, uma cidade: uma discussão sobre o Gabinete de Leitura Ipuense
(1886-1919).
2 Graduado em História pela Universidade Estadual Vale do Acaraú - UVA
3 Professor Assistente (orientador) – Universidade Estadual Vale do Acaraú - UVA
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impossibilitada de ensaiar os primeiros passos no mundo das letras. Leitura, reuniões
literárias, imprensa, tudo era ausente; reinava a desordem e o acanhamento cultural.
Na segunda metade do século XIX, surgem os primeiros intelectuais e as
primeiras iniciativas – tímidas e mirradas – de estabelecer práticas culturais ligadas à
cultura letrada. Percorrendo os jornais da primeira metade do século XX, percebemos a
existência de um grupo social diminuto, mas consciente de sua condição privilegiada de
letrados. Faziam, portanto, porta-vozes dos interesses que diziam ser da cidade, mas que,
no fundo, representavam seus interesses próprios enquanto classe separada, enquanto
inteligentsia local em busca de demarcar seu território social e garantir seus privilégios.
A passagem de uma vila sacudida pelos arrebatamentos violentos dos
valentões da região, durante a primeira metade do século XIX, à cidade em busca de
progresso e civilização é o que discutiremos neste trabalho.
1 QUANDO TUDO SE RESOLVIA PELA “LEI DO BACAMARTE”
Em 1915, a Revista do Instituto do Ceará trouxe a público um trabalho
composto por Eusébio de Sousa chamado Um pouco de história: Chronica do Ipu. Em seu
texto, Eusébio procurou reconstruir a história da cidade de Ipu remontando à fundação,
fato que atribui a uma matrona branca – D. Joana de Paula Vieira Mimosa – a quem teria
sido doada a porção de terra situada às margens do Riacho Ipuçaba, no sopé da Serra da
Ibiapaba.4
Em seu descortinamento da história ipuense, Eusébio reconstitui vários
acontecimentos concentrando sua atenção, ao referir-se ao século XIX, em fatos
considerados nefastos para história da então pequena vila do sertão cearense. Tais fatos
fazem parte do imenso repertório de lutas violentas que assolaram, segundo os cronistas, o
sertão do Vale do Acaraú e a Serra da Ibiapaba. Bandos armados chefiados por coronéis se
digladiaram em sangrentas lutas de família, lutas cujo motivo ia desde o defloramento e
4 Cf. SOUSA, Eusébio de. Um pouco de história: chronica do Ipu. In: Revista do Instituto do Ceará.
Fortaleza, tomo XXIX, p. 152-243, ano 1915.
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rapto de donzelas até animosidades de natureza política. Em suma, como se dizia à época,
tudo se resolvia pela “lei do bacamarte”.
Dentre os autores e obras que se referem aos ditos episódios violentos,
materializados em épicas brigas entre os grandes clãs patriarcais estabelecidos na região
norte do Ceará, chegou-nos às mãos o livro de Nertan Macedo, O Bacamarte dos
Mourões. Ali são relatadas inúmeras façanhas da poderosa e ousada família Mourão, cuja
principal propriedade fundiária, uma espécie de feudo fora de época, compreendia parte da
região do atual município de Ipueiras, mais precisamente a porção serrana deste
município, no lugarejo conhecido, à época, como Matriz de São Gonçalo da Serra dos
Cocos5.
No ano de 1840, o Ipu passou à condição de sede da Vila Nova d’El Rey,
condição que antes pertenceu o povoado do Campo Grande, atual cidade de Guaraciaba do
Norte6. Na realidade, Ipu compunha-se de um ajuntamento desconexo de casinhas de
taipa, sendo as melhores edificações dispostas em volta da pequena igreja, situada em
praça próxima às margens do Riacho Ipuçaba. A população, em sua maioria composta de
pobres e mestiços, vivia em constante sobressalto por causa das constantes correrias dos
bandos de cabras armados cujas façanhas violentas eram fruto do mando dos coronéis
proprietários da região.
Elevado à categoria de vila, o Ipu não deixou, contudo, de ser alvo da índole
violenta da época. Na realidade, o episódio mais sangrento e de mais nefastas
conseqüências ainda estava por vir.
Completando o rosário de antecedentes deste fato, chegou ao Ipu, em 1845, o
padre Francisco Corrêa de Carvalho e Silva, vigário da Freguesia de São Gonçalo da Serra
dos Cocos, da qual a pequena igreja de Ipu era capela. Deveria o reverendo vigário residir
no povoado onde estava o templo designado para matriz da Freguesia, mas, como este
estava localizado no povoado da Matriz de São Gonçalo, sobre a Serra da Ibiapaba, reduto
da poderosa família Mourão, o padre teve que evadir-se de lá. O motivo: indisposições de
5 Cf. MACEDO, Nertan. O Bacamarte dos Mourões (2ª ed). Rio de Janeiro: Editora Rennes, 1980.
6 Cf. ARAÚJO, Pe Francisco Sadoc de. História Religiosa de Guaraciaba do Norte. Fortaleza: Imprensa
Oficial do Ceará, 1988; e MELLO, Maria Valdemira Coelho. O Ipu em três épocas. Fortaleza: Popular
Editora, 1985.
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natureza política entre o senhor vigário e os poderosos mandatários da Matriz, os
Mourões.
O Padre Corrêa, segundo Joaquim Catunda, seu mais incendiário biógrafo7,
tinha uma postura política verdadeiramente camaleônica. Mudava de partido como se
muda de roupa. Ora apoiava os liberais, ora os conservadores. Numa de suas “viradas de
casaca”, o padre, residindo na Matriz de São Gonçalo, abandonou as fileiras
conservadoras e passou para o lado dos liberais, arrastando consigo parte da família Melo,
prima em primeiro grau dos Mourões. Sabendo que atraíra a ira dos valentões da Matriz de
São Gonçalo, a padre fugiu para o Ipu, aonde veio colocar-se sob a proteção do coronel
Francisco Paulino Galvão e do delegado Manuel Ribeiro Melo.
Hábil na montagem de futricas políticas, o padre teria, ainda de acordo com
Joaquim Catunda, incitado o delegado a prender, sem motivo aparente, os correligionários
políticos dos Mourões no Ipu, fato que ateou ainda mais lenha na fumarenta fogueira da
ira dos valentões da Serra dos Cocos.
O resultado não poderia ser outro. A noite do dia 25 de janeiro de 1846 foi
marcada pelos gritos, tiros e mortes, constituindo um episódio macabro e traumatizante
para a memória ipuense. Os irmãos Alexandre da Silva Mourão e José de Barros Mourão,
acompanhados de forte séquito de cabras armados, atacaram a pequena e tosca edificação
que servia de cadeia à Vila Nova do Ipu. Entre os disparos, um houve que acertou o peito
de José de Barros Mourão, morrendo este nas calçadas da igreja de São Sebastião do Ipu.
O bando tinha três objetivos: libertar os correligionários presos, matar o delegado Manoel
Ribeiro Melo e matar o padre Corrêa.
Do ponto de vista dos Mourões, a façanha terminou em desastre. Não
conseguiram encontrar o delegado, não mataram o padre e perderam seu segundo homem
valente, o Capitão José de Barros Mourão, apelidado de “O Cabano”, por sua atuação no
7 Joaquim Catunda publicou, em 1871, uma ácida biografia do padre Corrêa, onde denunciava os vários
desmandos cometidos pelo vigário. Catunda foi senador pela Província do Ceará, assim como o padre
Corrêa. Residindo na vila do Ipu durante a década de 1870, indispôs-se com o vigário, provavelmente, por
motivos ligados às complicadas injunções políticas da época. Sua Biografia do Reverendo Padre Corrêa –
Vigário do Ipu foi republicada por Nertan Macedo no citado O Bacamarte dos Mourões.
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combate os rebeldes da Cabanagem que se espalharam pelo Piauí e porção da região norte
do Ceará8.
O fato ganhou os jornais da capital cearense. O jornal conservador Pedro II9¸
assim se referiu ao estado de coisas que se podia verificar na vila após o ataque:
“Eis o estado a que de presente esta reduzido o Municipio do Ipu: o seu futuro
parece prenhe de funestos, e ainda mais atrozes sucessos: se o Govêrno não for
enérgico, enviando quanto antes para ali uma boa fôrça, e à disposição do Chefe
de Polícia que para lá deve seguir, porém, o Governo... e temos governo... basta.
Em outro no daremos uma notícia mais circunstanciada desses acontecimentos.”10
Diante de tão graves fatos, o jornal anuncia para a vila um futuro “prenhe de
funestos”, ou seja, diante de tão negros e calamitosos acontecimentos, o que se poderia
esperar de uma povoação cujos habitantes se mostravam dispostos a cometer atos
considerados contrários à civilização e ao progresso?
Eusébio de Sousa, por sua vez, também não se furtou à oportunidade de
lamentar tal fato e associar a um preocupante estado da barbárie o estouro de tão violentos
episódios. Referindo-se à primeira metade do século XIX e às lutas violentas ali ocorridas,
Eusébio afirma tratar-se de uma época “estacionaria de formação litteraria ipuense. O
tempo mal chegava para os sobresaltos continuos de sua população”11
Dessa forma, para Eusébio de Sousa, bem como para os demais homens de
letras do início do século XX, aquele estágio de “barbárie” compreendido pela primeira
metade do século XIX só pôde ser superado com o surgimento das primeiras
manifestações culturais ligadas ao domínio da cultura letrada. O surgimento do primeiro
grupo de teatro da vila, por volta de 1870, é celebrado por Eusébio de Sousa como os
“primeiros passos” da vida intelectual da vila.
2 CIVILIZAÇÃO E CULTURA LETRADA
8 Cf. MACEDO, Nertan. Op. Cit.
9 Sabemos da orientação conservadora do jornal Pedro II graças à leitura de FERNANDES, Ana Carla
Sabino. A imprensa em pauta: jornais Pedro II, Cearense e Constituição. Fortaleza: Secretaria de Cultura do
Estado do Ceará, 2006.
10 Jornal Pedro II, 7 de fevereiro de 1846 apud MACEDO, Nertan. op cit p 115.
11 Cf. SOUSA, Eusébio. Op. cit. p 221.
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As lutas e sobressaltos constantes agora estavam ausentes, o que permitia à vila
o surgimento das primeiras manifestações intelectuais e a reunião de um primeiro grupo
de indivíduos que constituem, segundo a descrição do autor, uma espécie de inteligentsia
local, ou seja, um grupo social que procura diferenciar-se do restante da população
especialmente pela posse e domínio das técnicas inerentes ao domínio da cultura letrada.
Diferenciados em relação ao restante da população da vila, tratam ainda de
chamar a si a responsabilidade de representar, em seu discurso e em suas práticas, o elo
progressista da sociedade ipuense. Desta forma, daquele intelectualismo embrionário
brotaram nomes que buscarão destaque na imprensa, na literatura e na política, e
requisitaram uma espécie de direito de mando cuja legitimidade basear-se-ia na posse de
bens materiais e no domínio de vasto cabedal cultural.
A formação de um grupo de atores amadores, reunidos em torno da sociedade
Recreio Dramatico, denuncia a primeira iniciativa social ligada à cultura letrada,
prenuncia a surgimento e desenvolvimento de uma nova sociabilidade relacionada ao
desenvolvimento urbano da vila.
Dos líderes desse primeiro e pequeno grupo de jovens cultos, temos a figura do
Thomaz de Aquino Corrêa, então adolescente, aliado a Félix Candido de Sousa Carvalho.
O primeiro viria a tornar-se o Coronel Thomaz Corrêa, farmacêutico, músico, jornalista,
poeta e agricultor bem sucedido, tudo graças ao seu talento de autodidata12; o segundo
migrou em busca de estudos e acabou bacharelando-se em Direito tendo, em 1920, sido
indicado para a Secretaria do Interior pelo então presidente do estado, Dr. Justiniano de
Serpa13.
A cidade é o lugar par excelence da cultura letrada. Teatros, agremiações
literárias, saraus, publicação de jornais, constituição de instituições voltadas para a prática
da leitura, tudo isso remete, sem embargo, ao espaço urbano. Urbanidade e civilidade,
progresso e civilização, são conceitos que caminham juntos e formam a equação cujo
12 Cf. GRÊMIO IPUENSE. Thomaz Corrêa: alguns aspectos de sua vida e de sua obra. Fortaleza: Tipografia
Minerva de Assis Bezerra & Cia, 1942; e PAZ, Francisco das Chagas. Almanaque Ipuense para o ano de
1961. Ipu: Oficinas Gráficas da Escola Profissional, 1960.
13 Cf. Desembargador Felix Candido. Correio do Norte, Ipu, 15 jul. 1920, p. 4.
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resultado é o tão almejado e festejado progresso material e espiritual que deveria,
fatalmente, atingir a vila.
A adoção de um conceito de “civilização” associado à transformação dos
padrões comportamentais, ao refinamento das maneiras e à educação à moda européia
pode ser percebida facilmente nos textos publicados nos jornais ipuenses do início do
século XX. O esforço por transformar a vila bárbara em uma cidade civilizada serve de
corolário ao discurso construído na imprensa ipuense, onde seus homens de letras militam
em defesa do progresso e da civilização.
Voltando a século XIX, após a fundação e rápido declínio do Recreio
Dramátrico, o mesmo grupo de jovens letrados, liderados pelo jovem Thomaz de Aquino
Corrêa, criou a sociedade Gabinete Ipuense de Leitura, cujo propósito confesso consistia
em proporcionar o acesso à leitura a uma população que se queria civilizar.
Entendido como um signo do progresso, o gabinete de leitura funciona como
local de reunião, de sociabilidade e de fruição intelectual, tornando-se um símbolo do
esforço civilizador empreendido pela inteligentsia local. O esforço em difundir o
letramento pode ser percebido na fundação da escola noturna, ou seja, um curso de
alfabetização ministrado pelos próprios sócios do gabinete no período noturno.
Destinavam-se as aulas aos analfabetos pobres. Esta iniciativa, todavia, não tardou a ser
descontinuada.
Temos, assim, a partir da segunda metade do século XIX, o início de um
possível “processo civilizador” levado a efeito na vila e, mais tarde, cidade do Ipu.
Iniciado com o surgimento da primeira manifestação ligada à cultura letrada, este processo
compreende a criação de espaços e instituições destinados à difusão de práticas e modos
de comportamento ligados à moda européia, em especial aos padrões culturais franceses,
muito em voga no Brasil do final do século XIX.
Para Norbert Elias, “civilização” seria o termo através do qual a sociedade
ocidental “procura descrever o que lhe constitui o caráter especial e aquilo de que se
orgulha: o nível de sua tecnologia, a natureza de suas maneiras, o desenvolvimento de sua
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cultura científica ou visão do mundo, e muito mais.”14 A civilização seria, dessa forma,
resultado de um processo - o “processo civilizador” - de mudanças comportamentais
caracterizadas pelo aumento do controle sobre as punções, da mudança na forma como
eram realizados atos cotidianos relacionados ao corpo, como escarrar, assoar-se, dormir,
pôr-se à mesa, etc. Este processo seria ainda marcado por “curvas”, ou seja, as mudanças
oscilavam, ora para frente, num sentido que o autor classifica como evolutivo, ora
retroagindo a formas mais antigas. No entanto, este processo, de acordo com Elias,
caminha no sentido evolutivo e seu resultado seria o que o Ocidente chama de
“civilização”.
Na esteira de Elias, podemos perceber o esforço de um grupo que se apresenta
como portador dos meios de civilização, ou seja, que defende como ideal de
comportamento e de cultura aquilo que caracteriza o seu comportamento, a sua cultura, ou
seja, de um grupo que procura estender sua influência sobre o restante da população,
através da difusão de padrões comportamentais compreendidos como mais adequados a
uma cidade que deveria preparar-se para a chegada iminente do progresso.
No bojo deste “processo”, a difusão das práticas de leitura constitui parte
indissociável da civilização que se pretende estabelecer na cidade. Somente uma
população esclarecida e informada por meio da leitura poderia levar a cidade ao progresso,
compreendido de forma, no mínimo, paradoxal. Mais ainda, somente uma população cujo
comportamento fosse refinado o suficiente para compreenderem o valor da apreciação de
um bom livro estaria realmente capacitada a protagonizar o desenvolvimento progressista
da cidade.
Quando falam de “progresso”, os intelectuais ipuenses não se referem ao
fenômeno contraditório, excludente e cruel, gerador de pobreza e dura exploração, típico
da Segunda Revolução Industrial tão facilmente constatável na realidade européia do
século XIX. Pensava, ao contrário, no estabelecimento da uma ordem social baseada no
tradicionalismo e conservadorismo caracterizado pela manutenção dos privilégios e do
poder de mando de um pequeno grupo cuja riqueza baseava-se na propriedade da terra.
Lembremos ainda que, na segunda metade do século XIX e primeiras décadas do século
14 Cf. ELIAS, Norbert. O processo civilizador: uma história dos costumes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.
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XX, a principal atividade econômica da vila do Ipu, bem como de toda a região norte do
Ceará, ainda era a produção agrícola, figurando como principal produto o algodão. Neste
contexto, a posse da terra constitui, sem dúvida, um distintivo social muito importante.
O progresso deplorado por poetas como Baudelaire15 e outros autores do
século XIX não era o mesmo que se apresentava revestido de ares de redenção nas páginas
dos jornais ipuenses. Para Thomaz Corrêa e seus amigos, o progresso caracterizava-se
pelo aumento da riqueza material acompanhado da reafirmação dos valores morais típicos
da Cristandade, ou seja, o aumento da riqueza desde que esta permanecesse sob controle
de uma aristocracia católica e conservadora, cujo comportamento irrepreensível alinharse-
ia com o mais duro moralismo.
Facetas daquilo que historicamente conhecemos como “progresso”, ou seja, as
nefastas conseqüências sociais das duras relações de trabalho típicas da industrialização, a
proliferação de males sociais como a violência e a prostituição, não fazem parte do
progresso que se sonha para a cidade de Ipu no final do século XIX e início do XX. Ao
contrário, pensava-se no aformoseamento do espaço urbano, na constituição de posturas
municipais, na difusão da alfabetização e da leitura, no aumento da riqueza aristocrática e
na imposição de padrões de comportamento austeros, cristãos, ascéticos.
Para a inteligentsia ipuense, o progresso será resultado do saneamento social,
implicando isto na exclusão de grupos e comportamentos considerados desviantes. Não é
sem razão, portanto, que o jornal Correio do Norte festeja a decisão do delegado de
polícia, o tenente Raymundo Pinheiro, a qual consistiu em proibir a circulação das
prostitutas dentro do Mercado Público. Não por acaso, a nota recebeu o título “Digno de
aplausos”. Isto foi publicado em 12 de fevereiro de 1920.16
Dois anos depois, o mesmo jornal implora ao então delegado providências no
sentido de “proibir a grande imundice de mulheres livres” que circulavam impunemente
1994, vol I, p 23. Itálico do autor.
15 A postura crítica de Bauldelaire a respeito do progresso e todas as suas contradições pode ser melhor
conhecida a partir da leitura de BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas III: Charles Baudelaire, um lírico no
auge do capitalismo. Tradutores: José Martins Barbosa, Hemerson Alves Baptista. São Paulo: Brasiliense,
1989.
16 Cf. Digno de aplausos. Correio do Norte, Ipu, 12 fev. 1920, p. 1.
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pelo Mercado, “a se expandirem com gestos e palavreados indecentes”17. Meninos de rua
também são alvos de reclamações junto à autoridade policial, pois estes andavam “n’uma
algazarra infernal, furtando, interrompendo os transeuntes, atirando pedras, jogando football,
etc.” A solução sugerida é a “prisão de uns quatro para exemplo”18.
A presença de figuras indesejáveis como prostitutas e meninos de rua
contrastava terrivelmente com o ideal de uma cidade civilizada. O comportamento destes
grupos era considerado por demais invasivo e escandaloso, perturbador da serena ordem
civilizada, afrontador da ordem e um estorvo ao progresso e não um resultado perverso do
mesmo. Para estes não era oferecida, com certeza, a possibilidade do acesso à prática da
leitura.
Por outro lado, outro grupo social, hegemônico nas páginas dos jornais,
organizava-se em torno de agremiações voltadas para a sociabilidade urbana da época.
Times de futebol, gabinete de leitura e grêmio recreativo constituem os pólos de atração de
um grupo de homens detentores da riqueza local, da posse da terra, do capital e, acima de
tudo, da influência política e social sobre uma população ainda pobre e analfabeta.
Reuniões literárias no salão do Gabinete de Leitura Ipuense serviam de palco
para discussões acerca da legitimidade da carta de bacharel de algum dos membros da
pretensa inteligentsia local. Intrigas e fofocas que, não raro, acabavam em sérias e
virulentas polêmicas nas páginas do jornal eram motivadas por ferinos ataques à vaidade
intelectual de algum membro do grupo de letrados locais. Esta espécie de antropofagia
servia, no entanto, para afirmar ainda mais o status quo de um grupo que se queria fazer
ver como os mais capazes ao exercício do mando e à posse da riqueza.
Em 1894, a cidade de Ipu teve inaugurada a sua Estação da Estrada de Ferro de
Sobral. Tal fato revela-se, dentro das dimensões de uma pequena cidade do interior do
Ceará na virada do final dos oitocentos, como um marco no processo civilizador –
tomando o conceito de Elias - da sociedade local.
Com a chegada dos trens, Ipu tornou-se, por certo tempo, o ponto final dos
trilhos da Estrada de Ferro de Sobral, aumentando, assim, a afluência de elementos
17 Cf. Com a policia. Correio do Norte, Ipu, 06 jul. 1922, p. 4.
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estrangeiros ao pequeno núcleo urbano. Naquele pé de serra surgiu e desenvolveu-se uma
estrutura de serviços como hotel, cafés, bilhares, casas comerciais, etc. Com o
prosseguimento da construção da ferrovia, Ipu tornou um importante entreposto na rota
dos trens cujo trajeto ligava o Porto de Camocim ao Piauí.
A inteligentsia ipuense do começo do século XX, já mais consciente e
confiante de seu papel social e cultural, agarrou-se com unhas e dentes à sua prerrogativa
civilizadora e progressista. Para tanto, adotaram uma postura bairrista a ponto de
duelarem, através da imprensa, com a principal cidade da região: Sobral.
Um dos impasses mais ferrenhos deu-se por ocasião da proposta feita pelos
sobralenses ao engenheiro-chefe da Estrada de Ferro de Sobral para que o pernoite dos
trens de Camocim fosse feito em Sobral, e não mais em Ipu. Contrastando artigo d’A
Lucta, o Correio do Norte nega com veemência a dependência comercial de Ipu em
relação a Sobral, alegada pelo primeiro como justificativa ao pedido feito ao engenheiro19.
Ora, o pernoite dos trens implicava no pernoite de boa parte de seus
passageiros, os quais usufruíam (e pagavam) dos serviços oferecidos pela cidade de Ipu.
Não raro, autoridades políticas eram “forçadas” a pernoitar em Ipu, servindo para tanto a
hospitalidade suspeitamente desinteressada dos aristocratas locais. Havia ainda na cidade o
hotel Rendez vous des amis, refinado estabelecimento de hospedagem que servia de palco
aos suntuosos jantares em homenagem aos visitantes ilustres, especialmente autoridades
políticas.
Pouco mais de um ano depois, e apesar das contraditas dos ipuenses, o pernoite
dos trens foi transferido para a cidade de Sobral20. Restou aos redatores do Correio do
Norte apenas deplorar tal idéia, demonstrando que não se rendiam ante a superioridade da
vizinha cidade da zona norte.
O texto de Eusébio de Sousa, como já dissemos, foi publicado em 1915, o que
sugere ter a sua escrita ocorrido alguns anos antes, provavelmente logo que este assumiu o
cargo de Juiz da Comarca do Ipu.
18 Cf. Idem.
19 Cf. E esta agora!...Correio do Norte, Ipu, 13 jan. 1922, p. 2.
20 Cf. E. F. de Sobral. Correio do Norte, Ipu, 08 fev. 1923, p. 1.
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Por outro lado, justamente em 1914, enquanto Eusébio – é o que supomos –
escrevia sua chronica, a cidade de Ipu e, mais especificamente, a cadeia, foi alvo de
violento ataque da parte do bando de cabras chefiados pelo Coronel João Martins da
Jaçanã. Assim, pouco menos de setenta anos depois, a cidade era novamente sobressaltada
por acontecimentos violentos.
O relato deste episódio encontramos no livro O coronel João Martins da
Jaçanã, escrito por Francisco Magalhães Martins21. Segundo o autor, teriam sido
mandados ao Ipu policiais jagunços oriundos das hostes da Sedição de Juazeiro, a qual
resultou na queda do presidente Franco Rabelo e na intervenção do General Setembrino de
Carvalho. Agindo sob livre arbítrio e movidos pela sensação de poder despertada pelo uso
da farda, os soldados, logo que chegaram ao Ipu, iniciaram uma farta distribuição de
pancadas que iam recair sobre os lombos de quem quer que lhes molestasse da forma mais
leve. Neste festival de arbitrariedades e abusos, brindaram com vários golpes de sabre o
jovem vereador Osório Martins, sobrinho do valente coronel João Martins da Jaçanã.
De seu refúgio na verdejante fazenda Jaçanã, o coronel, logo que tomou
conhecimento da agressão dispensada ao sobrinho, pôs em marcha seu séquito de cabras
armados e fincou esporas no cavalo rumo ao Ipu. No dia seguinte, pelas cinco da manhã,
João Martins e seu bando penetravam a cidade saudando os soldados/jagunços com
formidável saraivada de balas. Encurralados na Casa de Câmara e Cadeia, os soldados não
tiveram alternativa a não ser tentar resistir até onde pudessem diante do implacável ataque
que sofriam. A tragédia só não alcançou maiores proporções graças à intervenção do
deputado Abílio Martins, o qual mediou negociações entre o coronel e os soldados,
conseguindo o cessar fogo.
Sem dúvida, tal fato constitui uma incômoda interrupção na marcha da cidade
rumo à civilização. No entanto, a inteligentsia local não recuou e novas iniciativas
culturais foram levadas a efeito. Jornais já existiam desde a década de 80 de século XIX,
embora tivessem, invariavelmente, vida efêmera. O Gabinete de Leitura foi reativado sob
nova sociedade em 1º de janeiro de 1919. Um ano antes começara a circular o Correio do
21Cf. MARTINS, Francisco Magalhães. O coronel João Martins da Jaçanã. Fortaleza: Henriqueta Galeno,
1977.
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Norte. Outros jornais, como a Gazeta do Sertão, já haviam sido publicados na cidade sob a
direção de homens de letras cujo talento era reconhecido em todo o estado.
Entre estes devotos do livro e da imprensa estavam o folclorista Leonardo
Mota, o Cel Thomaz Corrêa, o jornalista Herculano José Rodrigues, Júlio Cícero
Monteiro, Aderson Magalhães, o deputado Abílio Martins, o engenheiro francês Leonard
Martin, o advogado Augusto Passos e José Oswaldo de Araújo.
Este grupo, por sua postura em relação ao restante da população, por seu
esforço no sentido de empreender um projeto civilizador, por se arvorar em ares de
defensores do progresso local, constitui, sem dúvida, a inteligentsia ipuense no começo do
século XX. Sem embargo, este grupo monopoliza o arrebanhamento dos indivíduos que se
mostravam sensíveis à atração exercida pelas letras.
Constituem, por outro lado, o estreito círculo dos leitores presentes na cidade.
A julgar pelo acervo do Gabinete de Leitura Ipuense, constatamos o gosto pela leitura dos
clássicos da literatura francesa do século XIX, livros científicos voltados para o Direito,
Medicina, Psicologia, além de vasta de gama de coletâneas de poesias onde figuram
nomes como Alfred Musset, romances de Alexandre Herculano e coleções de História
Geral e do Brasil, destacando-se autores como Rocha Pombo.
Enfileirados nas estantes do Gabinete de Leitura, estes livros representam mais
que a presença da leitura; representam o esforço de manter um padrão cultural e
comportamental adquirido em praças mais civilizadas, como Recife ou Rio de Janeiro, e o
esforço por alinhar-se ao padrão parisiense, onde os cabinets litteráires haviam feito
grande sucesso entre os séculos XVIII e XIX22. Representam também o avanço do
processo de civilização pretendido pelo grupo seleto de leitores/jornalista/escritores.
CONCLUSÃO
22 Sobre os cabinets litteráires, ver CHARTIER, Roger. Leituras e leitores na França do Antigo Regime.
São Paulo: Editora UNESP, 2004; e DARNTON, Robert. A filosofia por baixo do pano. In: Revolução
Impressa: a imprensa na França, 1775-1800. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1996, pp 49-
75.
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Em suma, o que se queria pensar era que já andava longe o tempo em que as armas
davam o tom na resolução dos conflitos, como acontecia na antiga vila, antecessora da
cidade que agora se apresentava dotada de adornos sofisticados, como um acervo de livros
reunidos num gabinete de leitura. No entanto, episódios recentes como o do Coronel João
Martins da Jaçanã não permitiam a cristalização dessa idéia da superação da fase de
“barbárie” na evolução da sociedade ipuense.
Desta forma, tomando como base a tese de Norbert Elias, o ataque à cadeia
protagonizado pelo Coronel João Martins da Jaçanã representa uma “curva”, ou um
retrocesso no processo civilizador da sociedade ipuense. No entanto, este movimento em
sentido retroativo não dura muito tempo, e a tendência evolutiva se restabelece.
A fundação do Gabinete de Leitura Ipuense, sociedade que reuniu intelectuais
locais como Abílio Martins, Joaquim Lima, Edgard Corrêa – filho de Thomaz Corrêa –
Abdoral Timbó e Francisco das Chagas Pinto da Silveira, representa um esforço no
sentido de reforçar o comportamento orientado para a prática da leitura, acompanhada de
todo um conjunto de práticas de sociabilidade típicas da cultura urbana.
No entanto, o futuro traria mais uma “curva”. O Gabinete de Leitura Ipuense, a
julgar pelos artigos veiculados no Correio do Norte, não conseguiu lograr o êxito
esperado. A década de 20 do século passado assistiu a um definhamento da inteligentsia
local, sendo suas práticas também suprimidas.
Por outro lado, a cidade em vias de progresso do final do século XIX e duas
primeiras décadas do XX foi, aos poucos, perdendo seus homens de letras e a
sociabilidade típica da cultura letrada urbana, como as reuniões no Gabinete de Leitura, foi
deixando de existir. Novas práticas estariam a caminho, e o glamour que se quis para o
Gabinete de Leitura não se verificou.
No entanto, os sucessos que marcam esta nova fase da história cultural do Ipu,
marcada pela decadência das práticas e instituições criadas dentro do recorte temporal de
que nos ocupamos, constituem objeto para outro trabalho que não este.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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