Texto e foto: blog do prof. Antonio Vitorino VISITE!
Mas, posso lançar uma última pergunta: por que as charges do Arcanjo faziam tanto sucesso em Ipu? E digo sem medo de errar: o seu sucesso não está na genialidade de seus traços, na perfeição da construção de suas caricaturas ou na beleza do desenho em si, não! O seu sucesso está no fato de levar o leitor, das charges, a sua vingança pessoal. Como assim? Quem, ao vislumbrar os traços da última Charge do Arcanjo, fotocopiada no “FOTO” do Assis, não abriu uma larga e gostosa gargalhada, daquelas que nos faz sentir o “cuspe amargo” de uma reação estomacal, com e os olhos cheios de lágrimas de um esforço inesperado, ao buscar em seus traços os “defeitos” físicos e “morais” dos nossos políticos retratados? O que dá prazer ao leitor não são as imagens desenhadas no papel em si, ou a genialidade de uma arte com um risco de artista, mas a emoção que elas evocam. É a sua vingança tão esperada. O prazer em seu rosto, no momento em que zomba da criatura caricaturada no papel, demonstra a alegria de imaginar a indignação e a raiva do político retratado ao entrar em contato pela primeira vez com a sua imagem ridicularizada em uma folha de papel A4. Daria, ele, tudo para estar ali, no momento mesmo, em que o político retratado, amassa a folha de papel e rosna alto, para todos ouvirem, proferindo palavrões ao autor daquela charge. Gostaria ele de estar lá, naquele momento, gargalhar e rir, zombar e se fartar com o seu semblante.
Posso ver claramente a imagem, tente evocá-la leitor, de um homem passando em frente ao FOTO do Assis, sentindo o cheiro acre da fumaça que sai do escapamento dos veículos e os sons ensurdecedores de vozes, buzinas, zumbidos e roncos de motores, tudo ao mesmo tempo, quando é surpreendido por uma tentativa de assobio, destes de alguém que ao mesmo tempo em que come um pedaço de bolo de três dias, atolado na boca, todo, junto com um gole de um wolguina bem gasoso, espalhando detritos no ar ao mesmo tempo em que, por seu ímpeto em levantar-se bruscamente, se molha de guaraná e se engasga: “Fiil, Fill ei, rosk, rosk, aí, aí! Olh... olha aqui, olha... a charge... é nova!” Dizia em sussurros como se estivesse escondendo alguma coisa de alguém. “É mesmo, deixa vê”, respondeu o homem que passava na calçada, ao entrar na loja. Depois de analisar minuciosamente aquela nova charge, e de discutir com o Assis, sobre todos os traços e características do vereador retratado em forma de cão (cachorro) naquele papel e, mais ainda, após sentir uma dor no estômago de tanto rir, e sede, também de tanto rir, profere as palavras mágicas que o dono do estabelecimento queria ouvir: “tira uma cópia pra mim”. Então, feliz, e vendo que sua estratégia deu certo e, lógico, após se divertir com aquilo, dispõe o papel na máquina de fotocópia e aperta um botão verde, no momento mesmo em que acena para alguém, com a mão direita, que passa na calçando, após dizer: “ei seu Assis!”, “Oi, meu amor”, “Shuist, Shuist, Shuist”- “Pronto, taqui, é 10”. Após pagar pela Charge e quando já ia saindo sorrindo sem tirar os olhos do papel, o homem escuta o dono do estabelecimento dizer em sussurros: “não fala que foi eu que te mostrei. A Charge só ta aqui porque o Raimundão deixou e porque ele é meu amigo, mas eu não gosto não...” Então, o mototaxista corre para seus amigos e mostra a Charge. Logo se junta uma multidão em torno dele: mototaxistas, taxistas, funcionários da lanchonete Dallas, da farmácia em frente, dos pequenos mercantis, dos curiosos que, na pequena loja ao lado da lanchonete aguardavam para cortar o cabelo “no Cabeça”, e não sei quantos mais transeuntes que no momento passam por ali. A cada nova gargalhada, outros se juntam àquele que tem o papel na mão.
E lá no FOTO do Assis ele pensa, olhando para Charge e para a máquina de “Xerox”, rindo: “logo, logo vamos trabalhar amiguinhas, o peixe mordeu a isca”
Então, novas fotocópias se espalham pelos botecos, lanchonetes, bares, lojas de roupas, oficinas de bicicletas e de motocicletas, bancas de camelôs e, logo, engraçadinhos colam nas paredes de seus estabelecimentos aquele papel com traços artísticos - como os calendários de mulheres peladas nas paredes de muitas oficinas mecânicas da época de minha adolescência quando ia lá para vê-las e me apaixonar por elas com meus pretextos diversos - para que todos que entrem ali sintam o mesmo prazer que o dono da oficina sentiu na primeira vez que pôs os olhos nele.
Mas, o prazer visível nos rostos daquelas pessoas comuns não passa, inconscientemente, de vinganças, as suas vinganças. Aquelas pessoas, naquele momento têm uma vontade imensa de ser como o Chargista, alguém que zomba do mais forte, como um herói que, mesmo sabendo que seus poderes são bem menores do que aquele dos seus inimigos e que lutar será o seu fim, não foge à luta para defender a humanidade. O Chargista é aquele que proporciona a esses infelizes, momentos de devaneio, o momento em que se esquecem de suas existências “idiotas”, pesadas, das contas a pagar, e do mundo demasiadamente concreto, da sua realidade implacável que o dia a dia lhes impõe. E se os políticos não fazem nada para minorar o seu sofrimento e se se sentem de mãos atadas ante um mundo tão evidente, zombar do mais forte, zombar daqueles que não conhecem a carga pesada do dia a dia é algo que conforta as suas ressequidas almas. O Chargista é seu herói, num mundo em que o vilão sempre vence, um mundo totalmente diferente da fantasia das revistas em quadrinhos dos tempos de Stan Lee, onde, ao contrário, os heróis sempre vencem os vilões. O Chargista é o seu herói, pois lhes permite colocar o mundo de ponta cabeça. Quem rir e zomba é o mais fraco e quem é ridicularizado é o mais forte. A inversão da ordem os conforta. Isso para eles é fascinante, embora não saibam por que e nem pensem sobre isso. Essas criaturas sentem-se felizes ao descobrir que o mais forte, com suas poses e posses, também têm defeitos e, mais do que isso, alguém tem coragem para apontá-los de uma maneira elegante, porém, não menos humilhante. As Charges os fazem lembrar algo que estavam esquecendo, que “Eles”, os mais fortes, são como NÓS, os mais fracos e o simples fato de pensarem no fato de que ELES também sofrem como NÓS, os conforta, e é por isso que precisam rir, zombar, caçoar do “inimigo”. É por isso que o chargista é seu herói, “é um gênio”, é um cara “demais”, “é diferente dos outros”, “é corajoso”, “enfrenta o mais forte”. É por isso que em algum momento querem ser ele, alguém que usa a arte para zombar, como quem coloca na ponta do lápis anos de descaso, de corrupção, de imoralidades, de safadezas, de conluios, de negociações escusas. Anos de conchavos de grã finos que não se contentam com a riqueza que já acumularam e negociam espaços, postos e influências, sem olharem para eles, criaturas chupadas pela implacável ação do tempo, do trabalho, do sol e do sofrimento. Estas almas ressequidas têm prazer ao se reconhecem vingadas pelo chargista. Sem o olhar treinado do especialista que vê nos traços de um desenho a alma do artista, a essência e os segredos do mundo, essas criaturas esquecidas percebem em cada traço do desenho a alma de seu mundo, o escárnio, a zombaria, a gargalhada, a chacota com o inimigo. Cada “defeito físico” exaltado pelo artista representa uma vingança; cada defeito moral, um prazer solto em sua gargalhada que faz questão que todos ousam, como quem diz, “toma seu desgraçado, é isso que tu merece!”. A Gargalhada é tão somente o gesto que permite exteriorizar a sua felicidade, perdida na imensidão de sua miséria. E a sua felicidade só é assim sentida porque aquele gesto permite-o, por alguns segundos, esquecer do seu mundo, e entrar em um outro mundo que não é o seu, um mundo em que ele se torna uma outra pessoa, em que ele se torna o chargista, por meio do qual obtém a sua vingança. E é por isso que a Charge do artista, mesmo sem ter um jornal para publicá-la, faz tanto sucesso. Ela se espalha pela cidade graça a vontade que o oprimido tem de que outras pessoas, semelhantes a ele, sintam o prazer e a felicidade que sentiu em doses homeopáticas. E é claro, graças também ao Assis, que ganha alguns trocados com a arte e a felicidade dos outros. Mas fico pensando se, na verdade, o fato de favorecer a reprodução da charge não está, também, em sua felicidade de zombar dos mais fortes e, portanto, querer que outros sintam o mesmo, a ponto de colecionar numa pasta de papelão, envelhecida, cujas ligas não têm mais a elasticidade de outrora, os originais, que não empresta a ninguém, de todas as charges do Arcanjo, prontas para serem reproduzidas a quem procurar os seus serviços. Talvez até, de vez em quando, quando o peso da existência pesa sobre seus ombros, ele retorne, sentado no chão, àquela pasta, para rir dos mais fortes com uma risada como aquela do personagem do filme, “Os narradores de Javé”, Antônio Biá, o carteiro que mora numa pequena cidade do interior do nordeste que passa a escrever cartas para todos os moradores, com remetentes falsos, zombando de seus “defeitos”, para não perder o seu emprego (e garantir o seus sustento), ao manter os serviços de correspondência funcionando, pois ninguém quase recebia ou escrevia cartas lá, em função de seus moradores serem, quase todos, analfabetos, razão pela qual, também, o governo fecharia o estabelecimento.
É por isso que o artista jamais pode morrer, outras pessoas precisam dele. Muitas pessoas precisam se colocar no lugar de outras para encontrar a felicidade, ainda que ela seja passageira. Mais ainda, é preciso rir com escárnio daqueles que zombam de nós todos os dias, na surdina... É a vingança do oprimido.
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